sábado, 27 de outubro de 2007

Treze

Nem só de mesquinharia e auto-desprezo vive um homem, entretanto. Lembrei-me agora de outra história, que envolve também uma ex-namorada (sim, sempre elas). Flávia fora uma das primeiras mulheres da minha vida. Eu era novo, ela um pouco mais, e dessa maneira nos entendíamos.
Nosso namoro era diferente do que eu tinha com Clara, era um namoro de casa de pais, passeios em shoppings e cinemas a tarde, mas dentro de nossa ingenuidade, nos dávamos bem.
Eu era um cara diferente para ela. Vinha de outra cidade, era um pouco mais velho (já estava na faculdade e ela saindo do segundo grau), tinha uma banda, uma postura diferente dos caras que a cercavam. Além da inteligência e da beleza de sempre, óbvio.
Nesse contexto, vivemos por volta de dois anos, dois anos e meio juntos, porém, um dia acabou. Até certo ponto, a coisa toda ocorreu de maneira civilizada. Ela trouxe minhas coisas que estavam na casa dela, como algumas roupas, que deixava lá para os fins de semana, alguns livros, filmes, e outras bugigangas mais que se acumulam ao longo do tempo na nossa vida.
Depois disso, ela me ligou algumas muitas vezes, pedindo para voltar, mas eu estava resoluto. Não adiantava, a coisa toda não iria rolar, e era um erro insistir, mas ela não enxergava isso, e eu compreendia, já estive do outro lado da moeda, por isso, procurei ter toda a paciência do mundo.
Certo dia, em um telefonema dela, lhe disse que me relacionava com outra pessoa. Na época, não era nada sério, mas ela não quis saber, simplesmente desligou o telefone, resolvida a sumir da minha vida. Em um primeiro momento, fique aliviado, pois os telefonemas pararam, e certa paz veio à minha vida.
Pouco tempo depois, já psicologicamente preparado, fui abrir as caixas que ela trouxera com minhas coisas. Tirando tudo de lá, sento falta de algo: meus discos do Elvis. Aí não!

You can do anything but lay off of my Blue suede shoes.

Resolvi dar algum tempo para a poeira baixar, depois iria atrás de meus discos, porém nesse meio tempo, Flávia começara uma verdadeira campanha interna de ódio à minha pessoa, como mudar de lado na calçada ao cruzar comigo na rua. Pelo que eu soubera através de terceiros, ela achava que eu a tinha traído, além de não suportar a dor da rejeição, ou algo do tipo.
A verdade, é que ela gostava ainda de mim. E não digo só pelo que eu acho, várias outras pessoas que nos conheciam diziam o mesmo. Complicado, mas o que eu podia fazer? Deixar de lado o que eu sentia e me anular? Não, não estava nos meus planos...
Por uma ironia do destino, a encontrei numa parada de ônibus numa noite qualquer. Após titubear alguns instantes, fui falar com ela:
- Flávia...
Ela virou o rosto, como se eu não estivesse ali.
- Escuta – disse calmamente – preciso falar contigo.
- Eu não tenho nada pra falar com você! – latiu ela.
Olhando firmemente pra ela, e falando de uma maneira séria, insisti:
- Se quiseres que todos aqui no ponto também ouçam, você quem decide.
Percebendo que eu falava sério, ela deu alguns passos para trás e começou a prestar atenção.
- O que você quer? – ela vociferava pelos olhos.
- Quero os meus discos de volta – resolvi ir direto ao ponto. Educação e bom senso não seriam muito apreciados no momento.
- Não tem mais – se expressar não era uma das qualidades dela, ou talvez apenas estivesse nervosa ou desnorteada. Se bem que ela sempre fora um pouco tímida.
- Como não tem mais?
- Não tem mais. Eles não estão mais comigo.
Eu não podia acreditar.
- E onde eles estão Flávia? – eu quase berrava.
- Eu doei, junto com algumas outras coisas suas que ficaram lá em casa.
Nem lembrava das outras coisas, então não me fariam falta, agora, os discos... alguns eram importados, nem se achava no Brasil.
- Você não podia ter feito isso...
Reunindo todo o desprezo e o prazer que só a maldade e a vingança executada podem dar em um só olhar, ela falou:
- Mas eu fiz...
Fui embora.
Eu precisava fazer alguma coisa, nem era pelos discos, mas pra não deixar barato. Eu tinha sido o mais sincero possível com ela, e tinha sido vítima de um golpe baixo, muito baixo.
Meu desejo não tardaria a se cumprir.
Outra noite da vida (sim, a noite é mágica e nos suga, nos puxa, e não larga), passo em frente a um bar conhecido, quando a vejo lá dentro, sentada em uma mesa sozinha.
Era hoje!
Entrei no bar, e antes que ela pudesse ir embora, me sentei em sua mesa:
- Flávia...
Ela ameaçou levantar, quando eu segurei sua mão e disse:
- Preciso falar contigo. É muito importante.
Ela nada disse, apenas ouvia. Olhei bem no fundo de seus olhos. Seria um golpe de mestre, um cheque mate na desvantagem de peças.
- Andei pensando esse tempo todo, na minha vida, nas coisas que aconteceram, em nós...
Os olhos dela cresceram. Segurei as duas mãos dela, me inclinei para a frente.
- E... milhares de dúvidas perpassam minha cabeça, mas uma coisa ficou clara pra mim. Quero você de volta.
Não é que a boca dela abriu, foi seu queixo quem despencou.
- N-n-n-nando... é verdade?
Levantei. Juntei toda a ironia e sarcasmo possível e falei:
- NÃO!

Amanhã acordaria de ressaca, mas acordaria feliz.

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Doze

“Eu sou um homem doente... um homem mau”.

Assim começa o livro “Memórias do Subsolo”, do meu caro Fiódor. A destrutividade e a miséria que o personagem se impõe, assim como a carga de sofrimento que ele próprio busca para si me faz pensar em certos aspectos moribundos da minha própria vida.

Desde que comecei a trabalhar no bar, tenho observado os mais diferentes tipos de pessoas, com as quais tenho que conviver quase que diariamente. É fácil observar as pessoas. Difícil é observar a si próprio. Creio que isso seja um pouco de receio de “olharmos dentro do abismo, pois senão ele começa a olhar dentro de nós”, como diria meu outro amigo, o Fred.

Dentro deste misto literário, já comecei a olhar várias vezes para dentro de mim. E assusta. O monstro é grande, e geralmente não o conhecemos, porém é essencial para uma vida plena nos acostumarmos com ele, pois não adianta querer domesticá-lo. Não cabe a nós.

Numa dessas curvas da vida, me identifiquei muito com o protagonista das “Memórias do Subsolo”. Vi uma pequena parte da minha pequenez, mesquinharia e insignificância. Minha podridão muitas vezes se encalacrava de tal maneira que me deixava cego ao que me cercava. E o monstro era feio. Vi como eu sou egoísta, preguiçoso e acomodado. E isso dói, de reconhecer. Pior ainda é querer mudar.

A grandeza da natureza humana contrasta significativamente com a sua podridão.

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Onze

Falando ainda em Werther, pensei nos sofrimentos de tal jovem. É sabido por todos que ele deu uns beijinhos na Carlota, nada fez a Alberto e se matou, sem nada fazer com seu amigo Guilherme e à sua mãe, a não ser um simples adeus. Isso porque era cabaço. Bem que Goethe diz que são os sofrimentos do jovem Werther, ou seja, piá pançudo.

Fico imaginando se nosso digníssimo Werther fosse um pouco mais vivido, qual seria sua reação ante tais fatos. Provavelmente ele mataria Alberto, passaria o rodo na Carlota e suas irmãs, depois voltaria para a casa de sua mãe e namoraria Guilherme.

Se bem que, podemos contar com a hipótese de Werther estar bêbado, já que ele abrira uma garrafa de vinho na noite do suicídio.

E se ao invés de uma só taça, ele tivesse entornado algumas garrafas? É provável que trocaria algumas coisas, tipo, passaria o rodo no Alberto, mataria Carlota e as irmãs e não se lembraria do caminho de casa, virando assim um mochileiro, precursor dos beats, mas na Alemanha.

Melhor parar de beber ou beber mais. É o meio-termo que mata...

Dez

Após todos estes acontecimentos e lembranças desagradáveis, achei por bem tomar uma cerveja, para simplesmente espairecer um pouco, tornar a vida mais leve e ainda tinha uma ressaca do dia anterior para curar. O que me impedia então? Escolhi o pior bar que achei, e me sentei, para meditar um pouco sobre a vida.

Ao chegar a primeira garrafa de cerveja, passei a pensar em todo o trabalho que seria preparar uma bebida como aquela. Aferrei-me à uma adoração praticamente wertheriana da coisa toda, desde o plantio da cevada, a espera para crescer, e quando chegasse a colheita, jovens germânicas saudáveis e risonhas, com fartos seios que passariam tardes alegres de sol a colher a cevada nos campos, e ao final de cada dia de labuta, tomariam banho todas juntas, ensaboando-se mutuamente...

Maldito capitalismo, acabando com a poesia do mundo.

quarta-feira, 17 de outubro de 2007

Nove

Dava pra notar na voz dela que estava alterada, mas não demonstrava estar sentindo falta. Fiquei novamente vários dias sem falar com ela. Clara tinha a qualidade maravilhosa de ser orgulhosa, e dificilmente abrir mão do que pensava e do que colocava em sua cabecinha. Compreendia isso nela, respeitava e admirava, mas só eu sabia o quanto isso era difícil pra mim.

Indo ao trabalho numa certa manhã, encontro na rua Suzana, uma amiga em comum minha e de Clara.

- Campe! Quanto tempo cara!

- Pois é Su! Tenho passado uns dias meio estranhos, daí tenho preferido ficar em casa.

- É a Clara?

- ... também...

- Eu falei com ela esses dias. Ela tá bem, me contou o que houve...

- Ela falou tudo?

- Eu acho que sim.

- Ela não podia ter rido de mim daquele jeito.

- Foi só a risada Campe?

- Lógico que não, complicou tudo, mas não foi só isso. É a questão de eu quere que ela more comigo também.

- Mas ela não quer!

- Eu sei, por isso resolvi me afastar dela. Não tenho mais ligado, nem falado com ela. E ela, bem... tu sabes que ela também não faz isso.

- É, a conheço muito bem. Mas acho que cada um está certo dentro do seu ponto de vista. Ela não quer, foi sincera, tu também, e resolveste te afastar. Vamos fazer o que né?

- É Su... Eu ainda gosto muito dela.

- E ela de ti Campe.

- Mas aquilo tava me fazendo mal.

- Então. Repito: vocês estão certos.

- É. Tenho que ir, senão me atraso...

- Tá Campe. Vamos tomar uma cerveja uma hora dessas, não te isoles em casa!

- Pode deixar Su!

Nos abraçamos e seguimos nossos caminhos. Alguns dias depois, no bar, Amanda me chama:

- Campe! Telefone pra ti!

- Obrigado querida! – pego o telefone - Alô?

- Campe? É a Su.

- Oi! Diga!

- To preocupada com a Clara...

- Por que? O que aconteceu?

- Olha, lembra aquele dia que nos encontramos?

- Sim...

- Eu menti pra você. Ela não estava bem. Tava a cada dia cheirando e bebendo mais. Desconfio que estivesse usando outras coisas também...

Comecei a me preocupar também. Clara, por ser uma pessoa tão forte, quando se afundava, ia com tudo.

- E por que não me disse isso aquele dia Su?

- Eu vi que não estavas bem, não queria piorar as coisas pra ti.

- Porra Su! Quando tu falaste com ela?

- Faz uns dois dias. To tentando desde ontem a noite ligar pra ela, mas ninguém atende nem no apartamento nem no celular. O porteiro do prédio disse que viu ela entrar ontem a tarde, com sacolas cheias de bebida, e ela não saiu mais.

- E do que tens medo Su? Sabe como ela é. Quando não quer, não fala, não dá sinal de vida, some...

- Eu sei Campe, mas ela estava com umas conversas muito estranhas ultimamente...

- Que tipo de conversas?

- ...

- Fala Su! Que caralho!

- Nada não Campe, esquece. Deve ser coisa da minha cabeça mesmo. Tu tens que voltar ao trabalho né? Tchau!

- Não Su! Espera...

Ela desligara o telefone. O bar estava enchendo, não podia retornar a ligação. Algo dentro de mim me espetava e incomodava. Eu precisava falar com Clara. Não me importando com o movimento, liguei para o celular dela. Caixa postal. Liguei para o apartamento. Ninguém atendia.

Estava com um péssimo pressentimento. Precisava ir lá. Tirei meu avental, larguei minhas coisas na minha gaveta, falei para meu chefe que era um caso de vida ou morte e sem esperar a resposta dele, eu fui.

Corri as oito quadras que separavam o bar do apartamento de Clara. Cheguei na portaria, recobrei o fôlego e avisei ao porteiro que iria subir. Como ele já me conhecia, nada disse, apenas assentiu com a cabeça. Subi os dois lances de escada e bati na porta do apartamento. Eu tinha a chave ainda, mas não me sentia no direito de usá-la:

- Clara! Sou eu, abre!

Um silêncio absoluto reinava dentro do apartamento. Soquei a porta algumas vezes:

- CLARA!!

Algo dentro do meu peito me angustiava e sufocava, meu Deus, eu preciso vê-la, saber que tudo está bem, essa neurose do caralho corria pelo meu corpo transformando meu sangue em água, ou qualquer outra coisa do gênero. Não tinha opção, iria usar a chave.

Abri a porta, entrei na sala:

- Clara? Estou entrando. Preciso falar contigo.

Fui até a cozinha e vi.

Na pia, latas de cerveja, garrafas vazias, nenhum sinal de comida. Na mesa, uma seringa ao lado de uma colher queimada e uma vela. Junto a isso, duas carreiras preparadas, ao lado de uma nota de cinco enrolada, com duas garrafas de conhaque, uma aberta e um terço consumida. E no chão, o corpo de Clara, com as veias abertas, que esvaíram o sangue dela, que jazia coagulado no chão escuro da cozinha. Perto dela, a faca que usada para a sua libertação.

Peguei a nota de cinco, enrolei melhor, acabei com as duas carreiras, guardei a nota no bolso e levei as duas garrafas.

Nunca entendi o porque.

Clara, Clara...

Por tua causa, tomei um porre de conhaque.

terça-feira, 16 de outubro de 2007

Oito

Não fora uma simples gargalhada, começara com uma risada muda, convertera-se em uma tosse surda, e acabara em um gargalhar alto, cortante.

- Campe! Morar juntos? De onde tirou isso, meu fofo?

Levantei e comecei a me vestir. Algo parecido com choro me embargou a voz.

- Nada, esqueça, foi só uma coisa que pensei – minha voz era séria, e demonstrava meu estado de espírito no momento. Algo que eu não desejava que acontecesse.

- Ah, ficou brabinho, foi? Vem cá vem, eu cuido de ti meu menino... – sua voz era doce, eu via que ela não estava querendo me prejudicar, porém não havia mais clima.

- Não Clara, preciso ir. Amanhã trabalho cedo.

- Isso nunca foi impedimento pra ti.

- É, mas hoje estou cansado – me aproximei dela e beijei-lhe a testa – tchau.

Enquanto saía, dei uma última olhada para trás, vi uma lágrima correr-lhe do olho, enquanto tirava um papelote branco da bolsa, junto com um cartão e uma nota de dez, e despejava o pó branco do papelote no criado-mudo e começava a preparar uma carreira. Fiquei preocupado se as lágrimas não cairiam sobre o pó.

Quando na rua, as lágrimas escorriam pela minha cara, e eu as enxugava freneticamente com as costas da mão, enquanto lembrava daquela gargalhada que tivera o mesmo efeito de um punhal enferrujado no rim. Perto de casa, um bar ainda estava aberto, resolvi parar pra tomar uma...

Dia seguinte acordei de ressaca, leve, mas de ressaca. A tristeza era pior que o efeito da cerveja no meu corpo. Como pudera ela rir daquele jeito?

Girl, I’m sorry, but I’m leaving

We both have fault, we bolt to blame…

Nos meus fones de ouvido, só músicas tristes. Na minha cabeça não pensava mais em ver Clara. Aquela situação toda de tê-la e não tê-la não me fazia bem. Eu a amava, e a queria só pra mim. Era um egoísmo da minha parte, mas era o que eu queria. Querer ir contra o que sentimos às vezes é muito complicado, a razão não é muito forte quando mais precisamos dela.

Uma semana passou, o trabalho no bar me ajudava a espairecer um pouco, e minhas bebedeiras noturnas solitárias ajudavam mais ainda. Nenhuma notícia de Clara. Ela não era de ligar, nem dar notícias. Eu também não iria fazer isso. Não dessa vez.

Eu vou rolar com os bêbados, pelas ruas imundas;

sob um céu de blues...

Baby, aonde está você, aonde você foi?

Eu me sentia péssimo, e não entendia o porque disso. Não era de sofrer assim por uma mulher. Me sentia triste, solitário, mas não sofria. Um dia desses, depois do trabalho, toca meu telefone:

- Campe? – era ela.

- Sim Clara, diga.

- Por que foste embora daquele jeito?

- Nada, tinha que dormir.

- Te conheço. Fala pra mim.

- Riste dos meus sentimentos de uma maneira que nunca imaginaria. Fiquei magoado.

- Me desculpa, mas me pareceu tão absurdo... Sabes muito bem que não é isso que eu quero.

- Pois é Clara, mas é o que eu quero. Te amo e quero viver contigo, ao menos tentar.

- Nando... Não sei se daria certo.

- Nem eu.

- Mas sinceramente não posso fazer isso, iria contra eu mesma.

- Então tá. Prefiro que não nos vejamos mais então.

- Tens certeza disso?

- Não, mas é o que eu penso.

- Se mudares de idéia, sabe onde me achar.

- Não mudarei. Tu és perfeita pra mim. Se não posso te ter por completo, prefiro não ter nada.

- Quanto egoísmo de sua parte.

- Descobri este lado recentemente.

- Eu gosto de ti Campe!

- E eu te amo – desliguei o telefone.

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Sete

Esse clima todo nostálgico com a visita à Sal, me fez relembrar vários episódios da minha vida. Entre eles o de Clara.

Clara foi minha namorada durante algum tempo importante na minha vida, assim como todos os tempos são quando passam em nossa vida. Clara era uma mulher fascinante. Consciente de sua feminilidade e beleza, inteligente, cheirosa, tinha um sorriso estatuante, um olhar de manhosa quando acordava, bebia bem e trepava melhor ainda. Quantas noites não nos resguardamos em nossa cama, loucos, inebriados e apaixonados, unidos apenas por nossa carne quente e fraca.

Com ela houve aquela utopia nonsense e maravilhosa de se querer estar junto para sempre, dividindo um mundo inteiro, e duas vidas esfarrapadas.

Clara era minha vida.

Certo final de tarde cheguei à sua casa com quatro garrafas de vinho, era inverno, e faria uma sopa para nós. Enquanto eu cozinhava, ela sentava comigo na cozinha e conversávamos, ao sabor das cervejas que haviam sobrado de outra epopéia íntima que vivêramos. Falávamos sobre Hollywood, Kerouac, Branca de Neve, Santiago do Chile, Marx, Rolling Stones, o que quer que aparecesse, enquanto nossas mentes se enchiam de cerveja e nossos corpos de desejos infindáveis, que se perdiam e se reencontravam em nossas veias e terminações nervosas. Muitas vezes eu não chegava a terminar o preparo da comida, íamos para a cama e ficávamos lá até a manhã seguinte, quando íamos beber nosso vinho.

Nunca disse à Clara que ela era minha vida.

Entretanto, ela nunca me perguntara nem pedira algo desse calibre, nossas liberdades fundiam-se aos nossos sentimentos, e eram quase plenos. Às vezes Clara ficava dias sem aparecer, sem dar sinal de vida, e eu, em minha agonia surda, ficava calado, apenas esperando. Não telefonava, não ia atrás, apenas me continha em aguardá-la.

Certa noite, na cama, eu estava deitado ao lado dela, de barriga para cima e com as mãos embaixo da cabeça. Ela, sentada ao meu lado, acendia um cigarro, e iluminava fracamente o quarto com a chama do isqueiro. Eu ainda tinha seu gosto em minha boca, e o cheiro pragmático de sua pele chegava em minhas narinas ocas, despertando em mim o desejo de levantar, abraçá-la e mordê-la, mas como muitas outras vezes me contive e falei:

- Clara...

- Diga.

- Podes me alcançar a cerveja?

- Claro...

Ela me entregara a garrafa, da qual eu tomei um longo gole para ver se a coragem não estava naquela garrafa.

Não estava.

Levantei e me sentei na cama, soltei um sonoro arroto e retornei à posição inicial.

- Clara...

- Hum?

- Tem uma coisa que eu to querendo te perguntar faz um tempo já.

- Pois pergunte oras!

Seu cheiro era inebriante, sufocante, extremamente excitante.

- Eu não sei como vais receber isso.

- Querido – ela passava a mão no meu cabelo – só vais saber se me perguntar, não é?

“CASE-SE COMIGO”, berrei dentro da minha cabeça, pra mim mesmo. Como minha boca não teve a mesma coragem, resolvi tomar mais um gole de cerveja. Me sentei na cama, de frente pra ela.

- E então, vai perguntar ou não?

- Clara, tu sabes o quanto eu gosto de ti...

- E eu de ti!

- ... e de estar, conversar, beber contigo...

- Sim, e sabes que a recíproca é verdadeira – disse ela com um pequeno sorriso desenhado nos lábios grossos e curtos.

- Eu andei pensando muito, muito em tudo isso, e queria saber se por um acaso... – as palavras não saíam.

- Por um acaso?

- ... nem que fosse por um tempo para testarmos, e tal, se tu gostaria de vir morar comigo?

Ela não respondera. Pusera o cigarro na boca, dera uma tragada, na ponta do cigarro um pequeno sol tomava vida na brasa. Fora uma longa tragada. Ela tirara o cigarro da boca.

E gargalhou.

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Seis

Domingo de manhã. Ressaca. Heavy, nua e frontal. Ressuscito e resolvo tentar por algo no estômago. Meu amigão velho de guerra não me decepciona e agüenta a metade do cachorro quente de ontem. Quando mais ou menos recuperado, resolvo visitar um velho amigo que o tempo, a falta de vivência e cagadas de ambos os lados afastaram de mim. Ele mora longe, sendo que decido pegar um ônibus. Faz tempo que não o vejo, e um certo embrulho no estômago me faz pensar que tipo de impulsividade me fez tomar essa decisão.

Ao chegar na casa dele, toco a campainha, sem saber se vou encontrá-lo ou não. Ele abre a porta e antes que diga alguma coisa, eu me adianto:

- Mishkin...

- Kirilov! Entra Campe...

Era um tanto quanto constrangedor, ou não, mas a coisa acontecia. Ele resolveu quebrar o gelo:

- Não esperava sua visita.

- Espero não estar atrapalhando nada.

- Não, ia ficar por aqui coçando mesmo. A que devo a visita?

- Nada de especial, estava por aqui. E resolvi vir para conversarmos.

- Sobre?

- ... nada de especial.

- Senta Fernando, vou pegar uma cerveja.

“Nada como uma boa gelada pra curar a ressaca”, pensei comigo mesmo. Meu amigo voltara com duas long necks já abertas, na qual eu tomei um longo gole, e senti uma leve ânsia, ao mesmo tempo que sentia meu estômago se assentar e então a cerveja ficara doce.

- Então Campe, como tá o trabalho?

- Ta bem cara, ta legal. Às vezes cansa um pouco, mas é tranqüilo.

- Uhum...

O silêncio era constrangedor, e a tensão era palpável. Resolvi jogar tudo à merda.

- Escuta Mishkin...

- Depois de todo esse tempo ainda me chamas de Mishkin.

- É. Escuta, sabes que gosto de ti pra caralho né?

- Eu também Campe.

- Pois é, e nos afastamos muito um do outro.

- Eu me comportei como um canalha muitas vezes, tu começou a ter outras perspectivas de vida. O tempo é assim meu caro, muda, distorce, corrói, melhora, mata, renasce... mas nunca volta atrás.

- Mas tu era um exemplo pra mim cara, alguém o qual eu queria ser igual.

- E?

- E...

- Fala porra!

- E tu começou a se comportar de uma maneira que contrariava tudo o que dizias, e aquilo começou a mudar a maneira como te enxergava...

- E você abandonou muitas coisas da sua vida as quais considerava importantes.

- Realmente. Como você mesmo disse, o tempo é implacável. Sabes que mesmo de longe, ainda te considero um irmão.

- Eu também Kirilov.

Me levantei, fora rápido mas não queria mais conversar.

- Acho que devíamos abandonar Mishkin e Kirilov – disse eu.

- Por que?

- Prefiro Dean e Sal.

- Moriarty e Paradise. É, é bom.

- Tô indo então Sal.

- Já, Dean?

- Já. Um pouco de cada vez.

Abracei-o. Sabia que a amizade nunca mais seria a mesma, mas um recomeço era sempre melhor que um término.

Já no ônibus, indo embora, pensava que bar estaria aberto para que eu pudesse continuar a curar minha ressaca.

terça-feira, 9 de outubro de 2007

Cinco

O mais engraçado (ou o mais triste) dessas situações todas, é a sensação de solidão que se passa algumas vezes. Mesmo cercado de pessoas, e me divertindo, me sinto por vezes deslocado e uma espécie de “viajante entre mundos”. Às vezes penso em simplesmente me render e embarcar em um desses barcos que passam em minha frente e existir dessa maneira, mas minha merda de consciência não me deixaria viver. Por outras vezes, creio que seria uma viagem curta e pouco aproveitada demais.

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Quatro

Chegando em casa e abrindo uma long neck, recebo uma ligação:

- Campe! - sim, sou eu também – que tu vai fazer hoje?

Era Robert, um grande amigo. Não combinávamos em muitas coisas, mas tínhamos vontades de viver que não se contrastavam em demasia.

- Não sei cara! Estou pensando em dar um tempo em casa mesmo.

- Pára! Tem o aniversário do Jaime! Lá naquele bar que fomos a uns sábados atrás!

Não gostava do Jaime e nem do tal bar. Música ruim, mulheres esnobes e homens sempre querendo brigar por algo que não valesse a pena, mas gostava de Robert, e sempre era divertido sair com ele. De mais a mais, ele me admirava quando o assunto era quantidade de bebida.

- Beleza, me pega aqui em casa às 9:00!

Tomei um banho e meia hora depois do combinado, escuto a buzina e um grito:

- Vamo cavalo!

O carinho das pessoas sempre me emociona.

Entro no carro, com duas latas de cerveja e com a trilha sonora já programada:

- Robert! Escuta essa cara! Do nosso velho tempo de guri!

Robert eu e mais alguns amigos tínhamos uma banda quando por volta dos nossos dezesseis, dezessete anos. O bom e velho punk-hardcore comia solto.

Porra! Era tudo doido da porra no kombão!

E assim começamos aquela noite. Jaime ainda não havia ligado, então não sabíamos quando exatamente ir, por isso decidimos rodar pela noite. Além do mais, precisávamos abastecer o carro e a nós mesmos. Assim que as latas ficaram vazias, paramos em um posto, onde voltei para o carro com três garrafas. Duas para mim e uma para Robert. Se comprasse duas pra ele, uma esquentaria. Eu não corria esse risco.

Com a demora da ligação do imbecil do Jaime, estávamos cogitando ir a outro lugar, onde rolasse um bom e velho rock’n’roll. Para Robert tanto fazia, desde que existissem mulheres para que ele olhasse e tentasse chegar junto. E nessa longa rodada, parávamos em quase todos os postos do caminho, e aquela cerveja foi descendo redonda, enquanto o som penetrava em nossos tímpanos querendo arrebentá-los, estuprá-los, e nossas gargantas berravam, com toda a fúria que nossa juventude queria, e a velocidade vinha nos abençoar com sua distorção das coisas, e eu olhava para Robert e via um pedaço da minha adolescência, e entendia várias idéias que tive um dia e fiz questão de esquecer, e conforme o baixo e a caixa aumentavam em um ritmo frenético, assim ia nossa adrenalina, nossa bebedeira e a velocidade do carro.

- Preciso mijar!

- Espera eu achar um lugar legal.

Entramos numa rua sem saída, onde no fim desta tinha um terreno baldio. Desci do carro, aquele rockão fudido ao fundo e pisei na grama. Quando senti meu pé afundar de leve, olhei para baixo e vi que pisava numa espécie de plantação de morangos, que não dava fruto nenhum, e era tão incrível pisar naquilo, destruindo aquelas plantas, enquanto me livrava daquela cerveja indesejável, liberando espaço para cerveja mais nova, e tudo aquilo se desenrolava de uma forma engraçada na minha cabeça.

- Robert! Olha aqui cara! A grama parece a porra de um morangueiro!

- Cala a boca Campe... – ele mijava na roda do carro, atordoado.

- Cara! To mijando num morangueiro...

Era incrível a sensação de liberdade e onipotência que sentíamos bêbados e loucos em nossa noite pela cidade. A velocidade, a bebida, a música incessante e pesada nos transformava em deuses que simplesmente bebiam e paravam em postos para reabastecer sua divindade profana.

A noite terminara em eu voltando a pé pra casa, após uma briga com o Jaime, parando numa barraca de cachorro quente às cinco da manhã, pagando um real por cheddar extra. Por sorte era um sábado e eu não trabalhava no domingo.

Três

Os clientes começaram a entrar, um após o outro, e ocupar as mesas. Entre eles, havia um casal que me chamava a atenção de uma forma mais peculiar que os demais. Nesse meu breve tempo de vida, conhecera muitas pessoas, mas eles eram diferentes. Sobre pessoas daquele tipo, já tinha lido em muitos livros, e lá eles sempre morriam por querer sustentar algo que prejudicava às demais pessoas, sem elas perceberem.

Além de eles aparecerem quase todos os dias, traziam consigo seu cachorro, um chiuaua maldito, que se achava o dono do mundo, pois recebia toda a atenção possível deste casal, ao passo que era apenas não um cachorro, mas uma pulga, que seria facilmente esmagado com um pisão, porém impossível de ser passível da justiça terrena, pois era o mimo do casal que era um dos melhores clientes do bar.

Eu odiava aquele cachorro.

Na frente do casal, ele lambia meus pés, e o marido e a mulher piamente acreditavam nele e na sua postura, mas bastava virarem as costas ou a atenção para ele querer me morder e babar na barra da minha calça.

Não me era perigoso, mas se o maltratasse, o casal poderia perceber, não gostar, e acabar com minha reputação, minha vida e algo mais.

Realmente odiava aquele cachorro. Mais falso que nota de três reais, porém refletia perfeitamente a índole daquele casal. Era aquela gente mal intencionada, e comovida, que tem no fim da tarde a sensação da missão cumprida. Pois é, tendo dinheiro, não existem coisas impossíveis. Peter Frampton era música boas para eles.

Dá status.

Ao menos na opinião deles.

E o pior, eles não tinham dinheiro. Já tiveram, mas hoje eram apenas uma sombra de uma sociedade decadente de outrora. Podiam pagar sua conta no dia, mas nunca o seu orgulho de pequenos burgueses.

Típico.

E assim como eles, existiam milhares.

Porém, os milhares não vinham ao bar. Ou vinham, mas não me davam trabalho como aquele casal tão especial.

E eles sempre sentavam em uma das minhas mesas. Saco.

Enfim, outro dia normal no bar, volto para casa. Consigo sair um pouco mais cedo e ainda caminho no sol da tarde, com uma leve brisa batendo no meu rosto e pensando em como isso é bom, enquanto a música estoura meus tímpanos lenta e gradualmente, ao mesmo tempo que enche minha alma e me leva junto com o sol e a brisa.

É bom estar vivo. Minha única preocupação no momento é se tem cerveja o suficiente em casa. Pra mim, a vida combina com uma cerveja gelada.

Evelyn sits by the elevatos doors ...

E como James eu estarei bebendo uma irlandesa esta noite. Ou uma cerveja qualquer mesmo.

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

Dois

Chego no bar. As mesmas pessoas de sempre, o segurança de cabelo pintado, os demais garçons (eu sou um deles), o pessoal da cozinha, o chefe. Todos empenhados (talvez não na mesma medida) em ajudar uns aos outros. Boas pessoas. Condicionados muitas vezes à alguma coisa que nem eles sabem o que é, o que os leva a agir de forma que não é de sua vontade, mas eles agem.

- Bom dia Campelo! – brada o segurança.

- Oi Fernando... – diz de forma sexy a menina que faz promoção de uma marca de amendoim salgado, e que desconfio que tenha uma queda por mim.

Ah sim, em tempo, Campelo sou eu, assim como Fernando. Fernando Campelo, para ser mais exato.

Respondo à todos, educadamente, quando não sou eu quem cumprimenta primeiro. Eu sou um boa praça, dentro do limite da minha paciência com as pessoas.

Vou para a cozinha, e na tentativa de aplacar minha sede, tomo um grande copo de água, de forma rápida, fazendo com que escorra um pouco pelo canto da minha boca. Tomo outro, e logo depois me sirvo de café no mesmo copo descartável, e vou para a frente do bar, me arrumar para logo receber os clientes.

-Ei Fernando! Tens bastante moeda de cinqüenta? Tô com pouca aqui!

Amanda era uma das garçonetes. Gente boa, bebia quase tanto quanto eu, e sem cair. Tinha olhos lindos, e conversava sobre tudo. E bem. Divergíamos em algumas coisas, mas nada fundamental demais para atrapalhar nossa amizade.

- Claro Amanda, pega cinco reais aqui. Se precisar de mais, pede depois.

Ter bastante dinheiro trocado é essencial para um garçom ser rápido no troco.

Nesse meio tempo, os outros garçons iam chegando. Haroldo, o cara quieto, mas totalmente surpreendente, pois sua reação perante às coisas era sempre uma incógnita. Muitos não gostavam dele por não ser muito sociável, e não ir muito de acordo com a dança vigente, mas eu gostava, talvez por esses mesmos motivos. Logo depois, chega Roberta, que era quase como Uma Thurman. Não era bonita, mas era.

Acho que o fato de ela ter uma bunda escultural e pernas ainda mais bem esculpidas ajudavam bastante.

Enfim, o bar abrira. Deve-se ter em mente que o bar de dia não era exatamente um boteco sujo. Era até freqüentado por pessoas que prestavam, mas por pessoas que não prestavam também, como pequenos empresários, que achavam que tinham o rei na barriga e que por causa deste o mundo girava em torno do umbigo. À noite a coisa mudava, mas não me interessava muito; porque não permanecia lá à noite. Não costumava beber lá. Onde se ganha o pão, não se come a carne.