segunda-feira, 6 de abril de 2009

Vinte e Quatro - Me gusta el tango

Depois do acidente na escada, fiquei sem os movimentos da cintura para baixo, inclusive das partes sexuais. Os meses seguintes a isso, foram meses difíceis, nos quais pensei várias vezes no suicídio, sendo que a única razão de eu não ter realizado o ato, foi minha mulher que estava sempre ao meu lado.

Entretanto, por conta da minha condição, eu não conseguia mais satisfazê-la sexualmente. Até conseguimos uma vez ou duas, por meio oral, ou com a mão, mas não era a mesma coisa, e depois de um tempo, comecei a evitá-la, por entender que além de ser humilhante para mim, era insatisfatório para ela.

Ela começou então a sair com outros homens.

A princípio, tentei me acostumar com a idéia. Ela merecia aquilo, depois de tantos meses atrelada a mim, eu já conseguia me virar relativamente bem dentro de casa, ela então tinha a liberdade de sair. No princípio, ela dizia que iria sair com algumas amigas, e eu acreditava nisso, mas após um certo tempo, comecei a perceber a verdade, e fiquei calado. Ela precisava daquilo. Se eu não conseguia suprir as suas “necessidades”, que direito tinha eu de cobrar o contrário? Eu e ela fingíamos que eu não sabia, e assim vivíamos.

Entretanto, alguns meses passados nesse ritmo, comecei a sentir um distanciamento por parte dela, não sei se real ou ilusório, causado pelo ciúme. Não ciúme dela, mas dos outros homens, da sua virilidade e possibilidade de poder fazê-la gozar. Era o que eu mais desejava na vida. Certo dia ela chegou em casa, e perguntei a queima roupa:

- Eu conheço?

- Quem?

- O homem com quem você está saindo. Ou é mais de um?

- Querido, do que você está falando?

- Liliane, por favor, chega. Chega de nos enganarmos. Eu não me importo, apenas me dê a dignidade de saber quem é.

- Eu não sei do que você está falando...

E saiu da sala.

- LILIANE! Volte aqui!

Fui com a cadeira de rodas atrás dela, mas ela já tinha pego sua bolsa, seu casaco e saiu, batendo a porta, coisa que nunca fez, deixando-me para trás com uma solidão enorme em cima dos ombros. Nem cinco minutos depois que ela saiu, começou no apartamento de cima um som característico, um bandoneon, tocando algum tango antigo. Era Nostalgia, reconheceria aquela entrada em qualquer lugar. Maldito timing de tragédia. Peguei a garrafa de uísque no armário, e sem me preocupar com copos, coloquei-me a beber, escutando aquele tango triste, que enchia meu apartamento. Liliane só voltaria na manhã seguinte.

Acordei ao meio dia, com a língua grudada no céu da boca e as costas muito doloridas, conseqüência de dormir na cadeira, sentado. Da cozinha, vinha um cheiro de comida que deveria ser maravilhoso, não fosse minha ressaca. Aquilo me embrulhou o estômago e vomitei em cima de mim mesmo. Da cozinha, Liliane correu:

- Querido! O que é isso? Sabes que não pode beber tanto assim! Venha, vamos limpar isso...

- Me deixa! Eu sei me virar!

Afastei-a com o braço e fui ao banheiro, onde consegui tomar meu banho graças às adaptações feitas no banheiro. Fiquei debaixo da água por mais de duas horas, como se ela, além de limpar minha alma, levasse embora a minha ressaca e a minha frustração. Ao desligar o chuveiro, ouvi a porta bater novamente, e o barulho dos saltos de Liliane ecoarem corredor afora. Coincidentemente, nem cinco minutos depois, o bandoneon recomeça, agora tocando o Caminito. Porra! Já não bastava a tristeza que eu sentia, ainda tinha que ter trilha sonora? Iria reclamar com o vizinho.

Me vesti, e fui até a porta de cima da minha. O tango ainda soava, me deixando cada vez mais triste, mas ao contrário do que eu pensava, aquilo não estava me fazendo mal. Bati na porta, e nada. Bati mais uma vez, mas parecia que meu vizinho não me ouvia por conta do som do bandoneon. Quando foi dada uma pausa na música, bati na porta não com os nós dos dedos, mas sim com a mão toda, fechada, fazendo-a estalar nos pinos. Uma voz feminina de dentro responde:

- Só um minuto!

Realmente, quase um minuto depois, a porta se abre e me deparo com uma mulher que de pronto me chamou a atenção. Via-se no seu rosto que era portenha, e isso foi confirmado quando ela falou comigo com um forte sotaque na voz:

- Buenas tardes... Que posso ajudar?

- Olá... – me perdi nas palavras – eu sou seu vizinho de baixo...

Ela era extremamente parecida com Fabiana Cantillo, e tinha uma voz parecida.

- Oh! Hola! Quieres entrar? – ela perguntou sorrindo.

Aquilo me atrapalhou mais ainda. Eu fui pronto para reclamar, brigar, descontar injustamente em alguém a minha frustração, mas aquele rosto, aquele sorriso e aquele portunhol me desarmaram completamente. Inventando uma desculpa na hora, falei:

- Desculpe atrapalhar, só quis ver quem estava tocando o bandoneon.

- Te gusta el tango?

Sem me dar conta do ridículo, respondi:

- Sí, me gusta el tango....

- Entre, estava a ponto de hacer un café.

- Não, não quero atrapalhar.

- Companhia nunca atrapalha, por favor...

Completamente sem jeito entrei. Aproveitando a deixa da última frase, entabulei uma conversa:

- Mora sozinha?

- Sí, cheguei de Buenos Aires hacen uns 6 meses. Estava em outro apartamento, mas agora mudei para cá. Mais espaçoso...

- Fala bem o português para tão pouco tempo.

- Gracias. Minha mãe era brasileña, meu pai argentino. Convivi com as duas línguas em casa.

- E o bandoneon?

- Herança do meu pai. Ele tocou na Orquestra Típica de Buenos Aires, yo nasci e cresci com um desses no colo.

- Pelo que eu pude ouvir, tocas muito bem.

- Gracias...

Dito isso, aquele silêncio constrangedor tomou conta do aposento. Me dando conta da minha situação ridícula, resolvi ir embora.

- Bom, tenho que ir, logo minha mulher deve voltar para casa.

- Que pena! Mas se precisa ir...

Já na porta, digo:

- Desculpe, nem perguntei seu nome...

- Maria Helena, mas todos me chamam de Malena. E tu?

- Carlos...

- Tal qual Gardel?

- Sí – disse eu com um sorriso bobo nos lábios.

- Se gostou mesmo, volte outro dia para me escutar!

- Você canta também, Malena?

- Não, nunca tentei.

- Devia, tem uma boa voz.

- ...

Já na porta do elevador, me voltei para seu apartamento e ela ainda estava na porta.

- Você bebe alguma coisa? – perguntei, para disfarçar minha virada.

- Quando me quedo triste, sí.

- Está triste ultimamente?

- Sí.

- Trarei algo para bebermos na próxima vez então.

Voltei ao apartamento, Liliane ainda não tinha voltado. Ótimo. Peguei novamente a garrafa de uísque, mas desta vez com o copo, e não tomei mais que duas doses. Me deitei e dormi. Tão bem como não dormia há tempos.

No dia seguinte, acordo e novamente sinto um cheiro bom vindo da cozinha. Fui até lá e Liliane cozinhava:

- Oi querido! Bom dia!

- Oi.

- O almoço está quase pronto!

- Não tenho fome.

- Mas tem que comer...

Sem dizer nada, li o jornal, enquanto ela colocava a mesa. Tudo impecável, como se dirigisse toda a sua energia sexual para aquela mesa.

Comi uma garfada ou duas. A comida estava ótima, mas havia algo que não me descia. Na minha cabeça, compassos de um tango, cantados por uma mulher. Após o almoço, fui para a sala, assistir televisão e fazer a digestão. Uma meia hora depois, Liliane passa por mim, e dando-me um beijo no rosto, diz:

- Vou ao shopping com a Lú!

- Quem é ele Liliane?

- Tchau querido, volto tarde!

E bateu a porta. Novamente, nem cinco minutos depois, o tango começa. Dessa vez era Adiós Muchachos. Passei a mão na garrafa de uísque e fui para o elevador. Dessa vez bati na porta e a música parou. Malena abriu, e deitou seu olhar estonteante na garrafa de uísque.

- Como te sentes hoje, Malena?

- Triste, por isso toco tango.

- Uma dose? – e mostrei a garrafa.

- Porque não duas?

Entrei e ela pegou dois copos e algum gelo. Sentou-se num sofá ao meu lado e nos serviu. O bandoneon ficou ao lado, no chão, com uma aparência deprimida.

- Não vai mais tocar?

- Tu estás aqui.

- Vim para te ouvir.

Ela pegou o instrumento, ajeitou as alças em seus ombros fortes, e começou a tocar. Era Volver.

Assim que a música começou, cantarolei o começo da música, acompanhando o bandoneon.

“Yo adivino el parpadeo

De las luces que a lo lejos

Van marcando mi retorno...

Son las mismas que alumbraron

Con sus palidos reflejos

Hondas horas de dolor...”

Ela parou de tocar.

- No me gusta el tango cantado.

- Eu gosto – retruquei.

- Então cante.

Cantei o resto da música, entremeada por três ou quatro doses, e ela me acompanhou, tanto na música quanto no uísque. Após a música, largou o instrumento e chegou perto de mim. Passou a mão no meu rosto e disse:

- Las cosas hermosas no deberían quebrar-se...

- Por favor Malena, pare.

- Por que?

- Sou um homem casado.

- E porque su mujer sai todas las tardes e noches?

- Não é só por isso. Eu não posso satisfazer uma mulher.

- Por isso ela sai?

- ...

- Tu não podes ou não sabes?

- Eu sabia. E muito bem.

Sem dizer nada, ela pega o bandoneon e começa outra música. Canaro em Paris. Lágrimas brotaram de meu rosto. Bêbado de merda!

Sem dizer palavra, ela largou novamente o instrumento e sentou-se em meu colo. Beijou-me longamente, me deixando sem ar, como há tempos eu não era beijado.

- Tu presencia já me dejas loca.

- Não Malena, por favor, não me crie expectativas...

- E se eu cantar para usted?

- O que isso seria diferente?

Ela pegou o instrumento, respirou fundo e tocou. A música era Malena.

“Tal vez alla en la infancia su voz de alondra

Tomo ese tono oscuro del callejon

O acaso aquel romance que solo nombra

Cuando se pone triste con el alcohol.

Malena canta el tango con voz de sombra,

Malena tiene pena de bandoneon.”

Enquanto ela cantava, seu corpo começou a tremer, seus olhos se fecharam, sua respiração tornou-se trêmula, e ela alcançou o orgasmo.

- No te quedes preocupado. Para mim, não é o corpo que me satisfaz, és la alma... E eso tu tienes em demasia.

Me servi de outra dose. A noite seria longa.