sábado, 12 de julho de 2008

Vinte e Um - Paco 03

Sua cabeça rodava. Já havia saído daquele bar estranho, estava em outro mais conhecido, mais sujo e mais mal freqüentado. Estava muito mais bêbado também. E os olhos do homem no qual ele atirara estavam muito mais nítidos em sua memória. Dois terços de uma garrafa de whisky e aquela coca toda que havia pego não ajudavam.

Sua visão estava embaçada, porém enxergava muita coisa. Precisava ir ao banheiro. Chegou, entrou em um reservado, abriu o zíper e mijou. Depois disso, baixou a tampa, espalhou o pó branco sobre esta e ajeitou para si três carreiras. Ao final da terceira, sentiu um soco no estômago, que vinha de dentro, e apenas teve tempo de abrir a tampa e vomitar. Ao olhar para o que saía de sua boca, viu a cor do malte e sangue.

Repentinamente, Paco deu-se conta de sua situação. Estava ajoelhado no chão de um banheiro imundo, sentia seus joelhos úmidos, não sabia do que, estava com a cabeça enfiada em uma privada encardida, cheia de mijo na borda, enquanto vomitava, ação que arrancava lágrimas de seus olhos, arranhava sua garganta, e levava esgoto abaixo não só sua bile, mas também o pouco amor-próprio que ainda lhe restava.

Ao fundo de tudo isso, no sistema de som do bar, ecoava a voz de Frank Sinatra, cantando “My Way”...

Ele havia chegado ao fundo do poço e ainda cavado um pouco mais.



Ela parou, voltou, olhou para ele e, com uma leve surpresa no rosto, perguntou:

- Você realmente não lembra?

- Não – sua reação foi tão natural que parecia que ele já estava acostumado a isso – você falou em tentativa de suicídio. Como assim?

- Eu não sei se estou autorizada a falar... Creio que o doutor Alfredo poderia lhe explicar melhor.

- E quando ele vem?

- Daqui umas três a quatro horas recomeça o plantão dele.

- E você vai me deixar assim, esse tempo todo, sem eu saber o que aconteceu comigo?

- ...

- Tudo bem Isadora, eu sei que você não pode...

Ela voltou, sentou aos pés da cama dele e lhe olhou.

Aqueles olhos... Cheios de piedade, necessidades, força...

- E tu só fazes o que lhe deixam, Paco?



“Porra, porra, porra!” Era o que passava pela cabeça de Paco enquanto ele rolava em sua cama. Estava calor, e o biorritmo acelerado pelo pó só fazia com que ele suasse ainda mais, fazendo com que sentisse o cheiro azedo e úmido do próprio suor já velho no corpo, fazendo-o se enojar ainda mais de si mesmo. O odor impregnado de vômito nas suas roupas não melhoravam o quadro.

“Pra que, pra que?” Precisava ir ao banheiro. Levantou-se da cama, tendo que apoiar-se na guarda-roupa, com tamanha violência que soltou a dobradiça da porta, a qual necessitaria um conserto amanhã, mas que não seria realizado, pois Paco foi ao banheiro, e lá mijou mais uma vez com a cabeça pendendo para a frente, fazendo com que seus olhos se fechassem a cada oscilar da testa.

“A que ponto eu cheguei?”

Os olhos eram nítidos. Odiosos, frios.

“A que ponto?”

Sentindo sede, foi até a cozinha. “Como eu me mataria? Um corte nas veias exige frieza para ver a vida escorrer pelos pulsos. Um tiro na boca ou pular de um prédio exige a resolução rápida... Nada que se enquadre em mim.”

Paco, porém, estava no estágio em que não se responde mais por si na bebedeira. Aquele em que se passa vexame em festas, e não se lembra no dia seguinte. O caso dele, entretanto, não era defecar no vaso de gerânios da tia.

Ele bebeu água direto do gargalo da garrafa e ia sair da cozinha quando sua mente embriagada deu um estalo. “O forno! O gás primeiro faz dormir...” Paco foi até o fogão, abriu a porta do forno, e ligou o gás com força total.

Ao tentar enfiar a cabeça dentro, escorregou, bateu com a cabeça na borda do fogão, quebrou a porta do forno que estava paralela ao solo, por estar aberta, e derrubou o fogão todo, acordando o vizinho de baixo.



- ... e foi isso que achamos que aconteceu, Paco.

- Agora que falou, começo a me lembrar de algumas coisas. Mas eu nunca iria me matar.

- Não tem cara de quem faria isso mesmo – ela falou baixo, desviando seu olhar do dele...

Ele a olhou, enxergou sua nunca e aqueles pequenos fios de cabelo da nuca que não ficavam presos no seu coque de enfermeira, com aquela pele que parecia tão sedosa e convidativa, e sentiu tentado a encostar nela, porém sabia que não faria isso, pois não era de seu feitio esse tipo de coisa.

Mas ele fez.

Com mais carinho que lascívia, Paco tocou na nuca de Isadora com a ponta de seus dedos, e pode quase que sentir o seu perfume com a mão. Ela reagiu de uma forma inesperada para ele, apenas contraindo levemente os ombros e sentindo aquele toque humano.

Coisas como essas ocorrem em segundos e ficam para sempre marcados na pele, como uma cicatriz, e com eles não foi diferente.

Isadora de um salto levantou-se e, como se nada tivesse ocorrido, pediu licença e saiu rapidamente do quarto. Ao contrário do que se possa imaginar, Paco não ficou chateado, pois ele sabia que a havia tocado não apenas na pele, pois pela primeira vez, desde a sua curta convivência, ela não o olhara nos olhos.

Ela sabia em quais olhos devia e não devia olhar.

Vinte - Paco 02

O dono do mercado levantou os braços e fez uma cara que mais demonstrava raiva que medo.

- Muito bem bigode! Fica quietinho que não dá nada!

Enquanto Ernesto mantinha o cara na mira, Paco recolhia o dinheiro da caixa registradora, rapidamente. Terminado isso, ele virou-se e precipitou-se para a porta, quando ouviu a voz que veio de trás dele:

- Quando a gente acabou com os comunistas no porão, devia ter matado os vagabundos que nem vocês junto! – e então Paco ouviu o tiro.

A coisa toda aconteceu em segundos, mas para ele foi uma eternidade.

Após ouvir o tiro, Paco olhou para Ernesto caindo de joelhos, com uma mancha vermelha no peito. Instintivamente, virou-se e viu o dono do local com uma arma na mão.

E Paco atirou uma vez.

Duas vezes.

Três vezes.

Com o impacto dos tiros, os braços do bigode levantaram-se e ele foi de costas contra o armário atrás dele. Como acontece nessas horas, os pensamentos de Paco estavam lúcidos e rapidíssimos, e ele pensou em olhar nos olhos do outro. Se lembrou das palavras de Cujón, e resolveu não olhar. Porém, a curiosidade humana é mais forte que a consciência.

Paco olhou nos olhos do homem no qual ele atirara. E entendeu.

Eram olhos cheios de desespero e raiva, e todo o seu rosto se contorcia nitidamente não por dor, mas por ódio, como se o dono deles pudesse voltar do inferno para buscar aquele que lhe matou.

Paco virou-se e saiu correndo do local.



Depois do comentário dela, ele não conseguiu dizer nada. Pensou em justificar-se, dizer alguma coisa, mas, além de não ter o que dizer, não devia nada disso a ela.

- Não acho que preciso de terapia.

- Não sou eu nem o senhor que vamos decidir isso, seu Paco.

- Paco.

- Perdão senhor?

- Apenas Paco, não devo ser muito mais velho que você. Não faço questão da polidez... Você não me disse seu nome.

- Isadora senhor, e eu não faço questão da intimidade.

Ela pegou pesado, e percebeu. Ele não estava dando em cima dela, estava apenas tentando buscar alguma espécie de contato humano, e só então a enfermeira entendera isso.

- Desculpe senhor, às vezes nós temos que ser assim porque algumas pessoas se excedem, mas não é o seu caso.

- Tudo bem Isadora, eu entendo.

Ela olhou para ele, que estava com a cabeça baixa, e notou seus olhos mareados.



Enquanto corria, Paco tirou seu capuz, tirou o dinheiro do saco plástico, colocou as notas de qualquer maneira no bolso e atirou o resto num lixo qualquer pela rua. E os olhos não saíam de sua cabeça.

Começou a andar, e entrou em um bar. Precisava tomar alguma coisa.

- Me dá uma dose de doze anos – pediu ele, sentando no balcão.

Ao chegar a dose, ele virou.

- Outra!

Nessa ele foi mais devagar, porém aquela primeira, junto com tudo que passava na sua cabeça, começaram a subir no seu estômago. Mal dando tempo de chegar à privada, Paco colocou pra fora todo o conteúdo do seu estômago, junto com a bile que estava lá. Ele tossia, seus olhos lacrimejavam e a garganta ardia.

Ele queria morrer.



Acostumada às mais diversas reações, a princípio Isadora não se incomodou com aquelas lágrimas, mas a conversa deles começou a vir toda em sua cabeça e ela se sentiu culpada por aquilo. Não era, mas ela não sabia.

- Seu Paco...

- ...

- Alguma coisa que eu possa fazer pelo senhor?

Levantando o rosto, seco e sem sinal algum de algo que pudesse ter acontecido, ele respondeu de maneira firme:

- Por enquanto eu creio que não, Isadora, obrigado.

- Se o senhor precisar, toque a campainha, virei rapidamente – disse ela saindo.

Quando a enfermeira chegou até a porta, abriu-a e, quando estava para sair, ouviu Paco dizer:

- Isadora... Como eu vim parar aqui?

Dezenove - Paco 01

Paco abrira os olhos. Primeiramente não sabia onde estava, mas logo adivinhara. Paredes brancas, teto alto, luzes fortes e, estando deitado numa maca com um soro espetado em seu braço, só podia estar em um hospital, ainda mais depois dos últimos acontecimentos.



- É aquele mercadinho da Luís Mafra, Paco, que acha?

- Aquele do bigodudo antipático?

- É.

- Bem que ele merece. Não gosto de fazer isso com pessoas que parecem boas. Aquele cara tem algo que sinceramente não me agrada...

- Então...



Ele ouviu a porta abrir, continuou deitado, estava um pouco tonto. Ela veio até ele e viu que estava acordado.

Os olhos dela!

Até hoje Paco não conseguiria dizer a cor, dependia de como ela lhe olhava. Podia ser verde, azul, mel, escuro... Podiam não ser...

Independente do que estivesse passando pela cabeça dele, a enfermeira lhe deu um sorriso reprovador e irônico:

- Então resolveu não dormir para sempre... – falou ela, mais para si mesma do que para ele.

- Desculpa, não estou entendendo...

- Nada não senhor – seu tom era mecânico – gostaria de lhe fazer algumas perguntas, para preenchermos seu cadastro aqui no hospital...



“Nunca olhe nos olhos deles!” Enquanto Paco conferia se sua arma não dava volume à sua roupa, lembrava-se dos conselhos do Cujón, seu antigo mentor em sua, digamos, profissão. “Se precisar atirar, e acertar, nunca olhe nos olhos deles!”

Paco nunca precisara, mas confessava que nutria uma certa curiosidade em relação a isso. Mais para saber o porque de seu antigo amigo lhe repetir tanto essas frases do que por maldade ou desejo gratuito de destruição.

- Não é hora de ficar pensando no que passou – repetiu para si próprio no espelho – hoje é dia de ação!

Saiu de casa e se encontrou com Ernesto, que planejara o golpe.

- E aí Paquito? Firmezinha?

Paco não gostava muito da confiança que Ernesto achava que tinha. Em seu ramo, não podia confiar nas pessoas, ainda mais quando estas usavam gírias escrotas.

- Bem, bem sim Ernesto.

- Ta tudo combinado então né Paco? Prefere repassar mais uma vez a parada toda?

- Não Ernesto, entendi da outra vez já. Uma vez é suficiente.

- Tá, tá... Bora moleque!

Desceram pela rua e avistaram o mercado. Ele era simples, lembrava um daqueles secos e molhados de antigamente, com apenas um balcão e as mercadorias atrás do atendente do balcão.

Passaram pela frente do mesmo uma vez e viram que estava vazio, apenas o velho bigodudo atrás do balcão. Na volta, Paco sentia-se apreensivo e ansioso. Uma noite em claro entre o whisky e a coca não ajudavam muito no processo, mas vivia-se. A menos de 10 metros da porta, eles colocaram a máscara de lã que traziam nos bolsos, sacaram a arma, e, ao entrar, Ernesto gritou:

- NÃO TE MEXE BIGODE! É UM ASSALTO!



- Nome?

- Como?

- Seu nome senhor...

- Paco Rodriguez Silveira.

- Paco... é nome mesmo isso? – hum, ela era humana afinal.

- Sim, minha mãe é chilena.

- E seu pai?

- Do mundo, não o conheci.

Um silêncio constrangedor envolveu a sala, ele notou até um sinal de arrependimento por parte dele, mas que logo se desfez e virou impressão.

- Idade?

- Vinte e seis.

- Usa algum medicamento?

- Não.

- Alguma substância química?

Agora foi a vez dele ficar constrangido.

- Não... Nada com freqüência.

Ela o encarou com curiosidade.

- Seus exames não demonstram isso senhor – ela fez um muxoxo com aqueles lábios que estavam hipnotizando Paco – mas isso não me diz respeito. Porém, o doutor Alfredo quer recomendar sessões de terapia para o senhor, e lá seria interessante sua sinceridade.

- Terapia?

- É normal depois de uma tentativa de suicídio senhor.

domingo, 11 de maio de 2008

Dezoito

Três homens em um funeral
bêbados (lógico)
chovia.
Como em todo bom funeral doloroso.

Três homens em um funeral na chuva.
Um tem guarda-chuva.
Um usa capa.
Outro tem a alma enlameada.

Uma mulher desce sete palmos.
Um bêbado soluça (de dor?).
Um bêbado chora amargamente.
Outro recolhe sua dor.

Caem as pás de terra.
Um ébrio vai embora.
Um ébrio não sabe onde ir.
Outro pensa na efemeridade da vida.

Fecha-se o buraco.
Um foi apaixonado.
Um amou.
Outro viveu sua vida.

Dezessete

Era uma quarta (ou seria segunda? tanto faz) a noite e lá estava eu sentado em minha casa, ouvindo algo bom e bebendo alguma coisa amarga com graduação alcoólica acima dos trinta por cento. Dentro deste momento de paz comigo mesmo, chega meu amigo Aureliano, que era sempre bem-vindo.
- Fala Campe! Qual é a boa?
- Olha Arcádio - era um trocadilho horrível que pouca gente entendia e só eu gostava. Por isso mesmo usava – ainda não sei. To meio baleado e tenho que trampar amanhã cedo.
- Ah, pára! Vamos sair, tô com uns esquemas aí. Vamos na casa de uma amiga minha!
Conhecendo o Aureliano até já imaginava que tipo de amiga seria. Mas, vendo ele minha hesitação e me conhecendo bem, logo falou:
- É aquela menina que eu conheci naquela festa semana passada!
- Que festa? – memória boa não é algo presente em mim. Álcool em demasia, creio eu, mas quem bebe pra lembrar?
- Aquela na casa daquele cara que você e o Josias ficaram esperando o cara embaixo do prédio dele com dois paralelepípedos nas mãos... E isso porque ele encheu o copo de vocês pela metade.
Lembrava de algo assim. E acho que lembrava da menina.
- Não era aquela de blusa rosa escrita “alguma coisa fofa” girl, que parecia um pogobol né?
- Não! Essa tava dando em cima de ti, lembra?
- Ih caralho, é verdade!
- Então, era a que tava na turma do lado da gente ali.
- Ah! Uma de blusa prateada? – nem sei se tinha alguém de blusa prateada.
- Não, não era a feia – e não é que tinha? – era a bonitinha. Não era a loira suicida, era a que tava vomitando no dia...
- Hum, acho que sei – não tinha a mínima idéia, mas não tava a fim de ficar naquela agonia de rememorar e ficar naquele sofá amnésico por mais uma meia hora ou mais, discutindo detalhes nem um pouco importantes.
- Então, vamos lá?
Não tendo nada melhor pra fazer, fui.
No caminho eu e Aureliano fazíamos a via sacra, parando de posto em posto para comprar cerveja, e olha que a casa dela era longe.
- Chegamos Campe – disse o meu singelo amigo todo animado, estacionando na frente de um prédio.
- Hum, legal – eu estava com sono, e praticamente embriagado.
Chegamos na portaria e ele pediu para o porteiro:
- Susana do 215, por favor.
O porteiro com uma cara de sacana, nos olhou de alto a baixo e, com aquela boca que sempre cospe ao falar, disse:
- Hum. São os amiguinhos de hoje?
Nós dois ignoramos o comentário. Era isso ou espancar o cara.
Ao chegar na porta do apê, ela já nos esperava:
- Oi rapazes, entrem – deu um beijinho no rosto de cada um – ali tem cerveja e uísque, fiquem a vontade.
Aureliano foi direto na cerveja enquanto eu preferi o 8 anos, que no caso presente, não passava de 4 anos. Vai assim mesmo.
Ela estava no quarto e gritou:
- Sentem e fiquem a vontade, já estou chegando.
Ao fundo tocava algum tipo de música eletrônica lenta ruim, e a iluminação estava à meia-luz. Aquilo tudo era muito estranho, mas como meu eterno parceiro estava curtindo à beça, fiquei quieto.
Nisso, ela sai do quarto.
De calcinha, sapato de salto alto, algo parecido com um baby doll e dançando alucinadamente, vindo pra cima do Aureliano, e me deixando sem entender mais nada.
Resolvi beber mais.
Quando me dei conta, ela estava sem a calcinha sentada na cara dele, em movimentos pélvicos, e por mais estranho que pareça, aquilo não me excitava, eu só tava meio perdido. Nisso, ele tira a cara de lá e diz:
- Agora é a vez do Campe, vai!
Nisso ela vem e abre as pernas em cima de mim, colocando minha nuca contra o encosto do sofá.
Ok, ela tinha uma bunda esculpida a mão, e pernas melhores ainda, mas eu nem a conhecia, e o Aureliano tinha acabado de lamber tudo por ali.
- Isso é hora de ter nojo? – pensei comigo mesmo.
E fui.
Fiquei ali por uns 25 minutos – na verdade não devem ter sido 3, mas deixa pra lá – quando ela sai de cima, vai pra frente de nós dois dançando e diz:
- Tá garotos, agora o resto tem que pagar mais 150 reais.
A ficha caiu. Estávamos numa zona. Santa ingenuidade Batman!
- Não, acho que vamos ficar por aqui mesmo – disse Aureliano – bora Campe?
- Ah não! – ela gritou – antes vocês tem que me pagar o strip!
- Paga ela aí Campe...
Filho da puta! Eu tinha cinco reais no bolso!
- Porra Arcádio! To sem grana cara!
- Eu também...
- O que? – ela se transformara – vou ligar já pro Amadeu!
Resolvi não ficar lá pra descobrir quem era o Amadeu, num pulo, levantei e abri a porta, e corri, ouvindo os passos pesados de Aureliano atrás. Apesar de estarmos no sexto andar, fomos pela escada e quando chegamos fora do prédio, ouvíamos ela berrando pela janela:
- Filhos da puta! Eu acho vocês! Mando matar.
Entramos correndo no carro, e assim que arrancamos, eu só conseguia dizer:
- Caralho! Seu merda! Puta que pariu! – e demais coisas do tipo.
Aureliano ria, ria como nunca, com todos aqueles seus dentões para fora.. Me dei por vencido e comecei a rir também. Ele era um filho da puta, mas era o meu filho da puta.
E seguimos pela noite, como em tantas outras, como anjos bêbados e loucos, errando dentro da nossa pureza, e deixando nossa consciência se acertar com o nosso desejo.

sexta-feira, 25 de abril de 2008

Dezesseis - Banzo

Estávamos eu e Clara uma noite qualquer na varanda do seu prédio. Isso acontecia mais ou menos umas duas semanas antes de eu pedi-la em casamento, e estávamos de bem um com o outro. Tínhamos acabado de fazer sexo, e estávamos nus na rede dela, banhados apenas pela luz de uma lua azulada que teimava em aparecer.
Eu bebia um oito anos e ela fumava seu eterno cigarro pós-sexo, e nada falávamos, apenas nos embriagávamos com a presença um do outro, com o calor de nossos corpos e aquela sensação maravilhosa de não ser obrigado a conversar se nada se tem pra falar.
Porém, melhor que ninguém, ela me conhecia. Eu me entregara, estava quieto por tempo demais, e com o olhar perdido demais.
Banzo.
- Que tu tem? – perguntou ela, circulando os dedos na minha barba.
- Nada não, divagando...
- Sobre...
Ela sempre arrancava as coisas de mim.
- Algumas coisas que aconteceram ultimamente.
- Entre a gente?
- Lógico que não Clara, entre a gente tá tudo legal. Outras coisas.
- Ui! Odeio quando tu se enrola assim! Fala logo! – ela logo perdia a paciência comigo.
- Calma! – tomei um gole - Nas coisas que aconteceram entre eu e os meus amigos.
- O que que tem?
- Ah Clara, tu sabe! O distanciamento que eu tive deles, esse tempo complicado que eu tive que morei fora, tudo isso...
- Tu ainda tá nessa? Campe... Enquanto não tirares isso da tua cabeça, e não for atrás deles, sabe que não adianta ficar remoendo. Só vai te dar uma úlcera isso.
- Eu sei, eu sei, já me disse isso uma centena de vezes... Mas eu tava pensando comigo e foi tu que quis que eu falasse.
- Já quer começar a brigar?
- Lógico que não...
Emudecemos ambos, quando ouvimos a porta da varanda do apartamento de cima se abrindo. Era o saxofonista anônimo. O vizinho de cima de Clara tocava sax na varanda algumas noites, e nas suas pausas, ouvíamos o barulho das pedras de gelo sendo giradas no copo. Suas músicas eram tristes, melancólicas, mas poderosas. Sempre ficávamos imaginando quem era ele. Se era um cara realmente triste, que vivia sozinho e ali dissipava sua miséria, sua tristeza, suas tendências suicidas, seja lá qual fosse o problema. Por outro lado, poderia ser um cara tranqüilo, com família, feliz, que gostava de músicas tristes. Eu e Clara sempre ficávamos com a primeira opção. Além de mais poética, combinava mais com a gente.
Ele começou a tocar um blues antigo, daqueles nascidos nos dormentes das estradas de ferro da Lousiana, e nos trouxe um certo alívio, pois nosso silêncio naquele momento era constrangedor.
Banzo.
- Clara...
Ela apenas me lançou um olhar reprovador, enquanto apontava com os olhos para cima. Eu entendi e fiquei quieto.

Don´t say I love you, because I won’t hold you

A música enchia o quarteirão naquela noite quieta, enquanto enchia minha cabeça ao mesmo tempo.
Clara então se virou, e começou a passar a mão ao lado da minha cabeça, correndo os dedos entre os meus cabelos. Além disso, me olhava nos olhos e enxergava coisas que só ela podia. Que só a ela eu mostrava. Meus medos, minhas fraquezas, as âncoras que amarravam a minha vida. Pra ela, eu desmontava minha casca, por mais que ela muitas vezes não demonstrasse se importar muito.
Ela tragava o cigarro, soltava a fumaça e mantinha um sorriso nos lábios, que eu, o tão esperto eu, não sabia dizer se era compaixão ou cinismo.
O tão corajoso eu não tinha coragem de perguntar.
- Nando – ela sussurrava – lembra daquela música “o tempo andou mexendo com a gente sim...” A gente muda querido...
- Mas é impossível que mudemos tanto.
- Não é o quanto mudamos, mas o que mudamos...
Clara, sempre ela.
Sempre tão odiosamente certa.
Tão bonita.
Tão ela.
Eu nunca a entendia, era preocupado demais com as minhas próprias vontades e necessidades, foi por isso que alguns dias depois a pedi em casamento.
Por não a entender, a perdi. Deus! Como pude ser tão estúpido? Tão egoísta? E mesmo tendo entendido, como pude persistir no erro?

Banzo filho da puta.