Sua cabeça rodava. Já havia saído daquele bar estranho, estava em outro mais conhecido, mais sujo e mais mal freqüentado. Estava muito mais bêbado também. E os olhos do homem no qual ele atirara estavam muito mais nítidos em sua memória. Dois terços de uma garrafa de whisky e aquela coca toda que havia pego não ajudavam.
Sua visão estava embaçada, porém enxergava muita coisa. Precisava ir ao banheiro. Chegou, entrou em um reservado, abriu o zíper e mijou. Depois disso, baixou a tampa, espalhou o pó branco sobre esta e ajeitou para si três carreiras. Ao final da terceira, sentiu um soco no estômago, que vinha de dentro, e apenas teve tempo de abrir a tampa e vomitar. Ao olhar para o que saía de sua boca, viu a cor do malte e sangue.
Repentinamente, Paco deu-se conta de sua situação. Estava ajoelhado no chão de um banheiro imundo, sentia seus joelhos úmidos, não sabia do que, estava com a cabeça enfiada em uma privada encardida, cheia de mijo na borda, enquanto vomitava, ação que arrancava lágrimas de seus olhos, arranhava sua garganta, e levava esgoto abaixo não só sua bile, mas também o pouco amor-próprio que ainda lhe restava.
Ao fundo de tudo isso, no sistema de som do bar, ecoava a voz de Frank Sinatra, cantando “My Way”...
Ele havia chegado ao fundo do poço e ainda cavado um pouco mais.
Ela parou, voltou, olhou para ele e, com uma leve surpresa no rosto, perguntou:
- Você realmente não lembra?
- Não – sua reação foi tão natural que parecia que ele já estava acostumado a isso – você falou em tentativa de suicídio. Como assim?
- Eu não sei se estou autorizada a falar... Creio que o doutor Alfredo poderia lhe explicar melhor.
- E quando ele vem?
- Daqui umas três a quatro horas recomeça o plantão dele.
- E você vai me deixar assim, esse tempo todo, sem eu saber o que aconteceu comigo?
- ...
- Tudo bem Isadora, eu sei que você não pode...
Ela voltou, sentou aos pés da cama dele e lhe olhou.
Aqueles olhos... Cheios de piedade, necessidades, força...
- E tu só fazes o que lhe deixam, Paco?
“Porra, porra, porra!” Era o que passava pela cabeça de Paco enquanto ele rolava em sua cama. Estava calor, e o biorritmo acelerado pelo pó só fazia com que ele suasse ainda mais, fazendo com que sentisse o cheiro azedo e úmido do próprio suor já velho no corpo, fazendo-o se enojar ainda mais de si mesmo. O odor impregnado de vômito nas suas roupas não melhoravam o quadro.
“Pra que, pra que?” Precisava ir ao banheiro. Levantou-se da cama, tendo que apoiar-se na guarda-roupa, com tamanha violência que soltou a dobradiça da porta, a qual necessitaria um conserto amanhã, mas que não seria realizado, pois Paco foi ao banheiro, e lá mijou mais uma vez com a cabeça pendendo para a frente, fazendo com que seus olhos se fechassem a cada oscilar da testa.
“A que ponto eu cheguei?”
Os olhos eram nítidos. Odiosos, frios.
“A que ponto?”
Sentindo sede, foi até a cozinha. “Como eu me mataria? Um corte nas veias exige frieza para ver a vida escorrer pelos pulsos. Um tiro na boca ou pular de um prédio exige a resolução rápida... Nada que se enquadre em mim.”
Paco, porém, estava no estágio em que não se responde mais por si na bebedeira. Aquele em que se passa vexame em festas, e não se lembra no dia seguinte. O caso dele, entretanto, não era defecar no vaso de gerânios da tia.
Ele bebeu água direto do gargalo da garrafa e ia sair da cozinha quando sua mente embriagada deu um estalo. “O forno! O gás primeiro faz dormir...” Paco foi até o fogão, abriu a porta do forno, e ligou o gás com força total.
Ao tentar enfiar a cabeça dentro, escorregou, bateu com a cabeça na borda do fogão, quebrou a porta do forno que estava paralela ao solo, por estar aberta, e derrubou o fogão todo, acordando o vizinho de baixo.
- ... e foi isso que achamos que aconteceu, Paco.
- Agora que falou, começo a me lembrar de algumas coisas. Mas eu nunca iria me matar.
- Não tem cara de quem faria isso mesmo – ela falou baixo, desviando seu olhar do dele...
Ele a olhou, enxergou sua nunca e aqueles pequenos fios de cabelo da nuca que não ficavam presos no seu coque de enfermeira, com aquela pele que parecia tão sedosa e convidativa, e sentiu tentado a encostar nela, porém sabia que não faria isso, pois não era de seu feitio esse tipo de coisa.
Mas ele fez.
Com mais carinho que lascívia, Paco tocou na nuca de Isadora com a ponta de seus dedos, e pode quase que sentir o seu perfume com a mão. Ela reagiu de uma forma inesperada para ele, apenas contraindo levemente os ombros e sentindo aquele toque humano.
Coisas como essas ocorrem em segundos e ficam para sempre marcados na pele, como uma cicatriz, e com eles não foi diferente.
Isadora de um salto levantou-se e, como se nada tivesse ocorrido, pediu licença e saiu rapidamente do quarto. Ao contrário do que se possa imaginar, Paco não ficou chateado, pois ele sabia que a havia tocado não apenas na pele, pois pela primeira vez, desde a sua curta convivência, ela não o olhara nos olhos.
Ela sabia em quais olhos devia e não devia olhar.