Henrique era meu amigo argentino. Conhecemo-nos em Buenos Aires, quando fui passar umas férias por lá. Possuíamos ideais em comum, bebíamos de igual pra igual e tínhamos um gosto diferenciado por mulheres. Brigas eram difíceis entre nós. Há seis meses ele morava no Brasil e já tinha um português. Volta e meia nos encontrávamos para tomar unas cervezas e lembrar nossos bons tempos de adolescente pelas calles da capital argentina.
Em uma noite qualquer, estávamos em um dos bares da vida, conversando, relembrando:
- Ê Campe, recorda-te da Maruja la Cachonda?
- Cara! Como eu iria esquecer? Aquela desgraçada me fez comer o pão que o diabo amassou. Lembra que dormi duas noites na calçada da casa dela, só para que ela viesse falar comigo?
- Sí, sí! Mas ela fazia valer a pena qualquer sacrifício, no és verdad?
- Se é. Se bem que aquelas garrafas de whisky barato ajudavam no sacrifício!
- Haha! Verdad Campe, verdad.
- Inclusive, foi na segunda noite que eu fui para o centro da cidade e fui preso por querer fazer uma serenata, lembra?
- Una serenata não, estavas a matar todos os perros que estavam na rua, com seu ganido monstruoso...
- Ah! Sai daí ô Luciano Pavarotti!
- Hahaha...
E assim íamos, entremeando histórias com risadas.
Entretanto, como nem sempre se tem a paz desejada, logo chega o Edgar. Cretino da pior espécie. Trepava com mulheres, comentava todos os detalhes e no final arrematava com um “vagabunda”, coroando com uma cara de desprezo. Além disso, havia pisado na bola comigo algumas vezes, e hoje quando me cumprimentava ou passava por mim, não conseguia me olhar nos olhos. Um moleque. Edgar conhecia Henrique por meu intermédio, e como era normal dele, já se achava o melhor amigo do mundo.
- Henrique! Rapaz! Como tá? – Edgar berrava enquanto batia nas costas de Henrique, que também não gostava dele.
- Bien, gracias – respondeu ele num muxoxo.
- Fernando... – disse ele baixinho, me estendendo a mão e olhando para o lado.
Eu não estendi a minha. Ele continuou com a mão estendida e me olhou de maneira inquiridora.
- Olha na minha cara quando me cumprimenta – falei rispidamente.
- Que é isso? – perguntou surpreso.
- Nada, só se comporte como homem, me olhe na cara.
Várias vezes tinha tentado conversar com ele, mas ele não quis, então desisti e passei a tratá-lo secamente.
Ele se sentou na lateral de nossa mesa e começou a falar com Henrique, posicionando-se de costas para mim.
E começou a defecar pela boca.
Ele falava, falava, e eu desliguei meu cérebro. Fiquei com pena de Henrique, mas ele sabia se virar. Nossa conversa estava arruinada de qualquer maneira.
Do nada, enquanto escutava ao longe aquela voz irritante, uma coisa começou a se embolar no meu peito. Uma agonia excruciante me tomava, comecei a passar as mãos no rosto, e a coisa se espalhava pelos meus ombros e a minha cabeça parecia que iria explodir. Olhei para aquela cabeça que estava na minha frente, seu cabelo preto e curto, uma cabeça fina, e a garrafa de cerveja pela metade ao lado. Peguei a garrafa, senti seu peso, sua textura, ajeitando-a à minha mão e...
... tudo apagou por breves instantes. Subitamente senti minha mão cortada pelos cacos da garrafa, e via Edgar tombar ao chão, com a cabeça aberta, e o sangue se misturava com a cerveja choca no chão do bar, formando um arabesco doentio. Tudo parecia um momento eterno, se não fosse pelo grito de Henrique:
- Basura de mierda! Carajo cabrón! Que haces?
Eu não sabia. Me sentia bem.
Henrique me pegou e me tirou do bar, precisávamos ir embora dali. Já longe, ele me pergunta:
- O que tu fez? O QUE TU FEZ?
- Nada pior do que fiz com aquele cafetão da rua Corientes, lembra?
- Lembro... – Henrique gargalhou – até hoje ele baba um pouco ao falar, haha!
- Sério! Não tive notícias dele depois daquilo.
- É, passou umas semanas internado, mas nada sério, a não ser pela baba.
- E cá pra nós. Edgar mereceu.
- Piensando bien, foi até tarde.
Continuamos a andar, precisávamos achar um bar aberto.
Semanas depois, soube que Edgar estava no hospital, bem. Só não sabia ainda se babava.